Por Eduardo Fernandes da Paz
Doutorando em Administração Pública e
Governo/FGV-SP
Não é minha pretensão com o artigo
analisar governos, partidos políticos, candidatos ou conteúdos programáticos,
sobretudo em razão do período político-eleitoral, essa tarefa passo (deixo)
democraticamente para você leitor.
A motivação aqui é outra, ou seja,
projetar nessa construção o federalismo como um fenômeno da divisão de poder,
com marcas originárias da combinação de descentralização e autonomia
territorial entre o poder central e demais entes subnacionais de forma a compor
um arranjo institucional complexo, mas necessário no processo de manutenção da
nação, apesar de sua imperfeição e instabilidade.
Recorro ao ensinamento, em tradução
livre, de Daniel Elazar (1987), onde contém a afirmação que o “federalismo é
bastante antigo, remetendo a documentos de antigas tribos de Israel no século
12 a.C. e seu entendimento ao longo dos séculos variou imensamente, inclusive
sendo utilizado de forma intercambiável com o termo confederação.”
A produção no plano teórico sobre a
investigação apresenta diversas fases e autores, que passo a descrever algumas
etapas e instituidores pela ótica cronológica.
A historiografia cita a marca do pensamento
althusiano. Althusius (1557-1638), filósofo calvinista alemão, abordou em seu
livro ‘Política’ as temáticas mais relevantes de seu tempo e apresentou a visão
moderna da primazia da letra da lei sobre a governança perpétua e incontestável
da autoridade ora no poder (HUEGLIN e FENNA, 2006).
Os autores Carlos Sérgio Gurgel da
Silva e Yan Pedro Pereira Guedes complementam sobre Althusius:”a origem do
federalismo, portanto, não remonta apenas à Constituição Norte-americana”.
Johannes Althusius é tido como o primeiro federalista, o primeiro a desenvolver
de maneira teórica o sistema de organização estatal firmado nos princípios
pactuais da política. Mais especificamente, Johannes Althusius é a origem do
referencial teórico do federalismo, o pai do federalismo moderno. Seu
pensamento foi assimilado pelos americanos. Tendo o desenvolvimento do seu
pensamento em sua obra “Política” (SILVA e GUEDES, 2017).
Outrossim, Camila Penna traz como
manchete na escrita do artigo sobre o pensamento federalista estadunidense a
seguinte informação: “Identifica-se notadamente uma presença das ideias de
Locke e Montesquieu, e em menor medida de Rousseau, nos artigos escritos por
Jay, Hamilton e Madison. É possível identificar elementos das obras destes
pensadores também nos argumentos dos antifederalistas – muitos dos quais eram
temas abordados no escopo dos artigos. Importa observar que as ideias de Locke,
Montesquieu e Rousseau balizavam as discussões teórico-políticas da época e
tiveram implicações práticas para a construção do modelo de república dos
Estados Unidos. O trabalho tem como objetivo a identificação da presença das
ideias de Locke, Rousseau e Montesquieu – contidas em suas respectivas obras:
“Segundo Tratado sobre o Governo” (1690), “Do Contrato Social” (1762) e “O
Espírito das Leis” (1748) – no pensamento dos federalistas, tal como expresso
em seus 85 artigos (1787-1788),” finaliza Camila (PENNA, janeiro-junho, 2011).
Já nos registros de Bobbio e
colaboradores o pensamento da teoria do federalismo de Immanuel Kant (1724–1804)
se apresentou na vanguarda com a seguinte característica: “A primeira
formulação de alguns elementos essenciais da teoria federalista, entendida como
doutrina social global, se encontra no início da era do nacionalismo nos
escritos políticos, jurídicos e filosófico históricos de Kant” (BOBBIO,
MATTEUCCI e PASQUINO, Unb, ed.11ª,1998).
Vale ressaltar, que não se pode
relegar a segundo plano na escala da concepção e prática as fórmulas, teorias e
conceitos como "walfare state", "checks and balances,"
"self-rule plus shared rule," " shared decision make,"
"tendência centrípeda e centrífuga," "recentralização,"
"análise do embate," e tantos outros, pois foram e/ou continuam ser
de grande valia para aparelhar na origem ou na sequência o entendimento e desenvolvimento,
bem como, uma compreensão holística do Federalismo.
John Jay, Alexander Hamilton e James
Madison, como acima já citado, formularam abstrações transformadas em um
ideário e traduzidas para militância escrita de convencimento que foram definitivas
para conceber o Estado Federado, com seus assentos nos periódicos publicados
primeiramente no “Independent Journal”, de Nova York, e posteriormente em
vários jornais dos Estados Unidos, os ensaios denominados “Artigos
Federalistas” 1787-1788, compilados em livro com o mesmo título, e que nos
oferecem a primeira e uma das mais completas formulações da teoria do Estado
federal.
Como exemplo, apresento o arcabouço
federativo inserido na CF/1891, dentro da tecnicidade de base constitucional:
“Art. 1º - A Nação brasileira adota
como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa,
proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e
indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.” http://www.planalto.gov.br/.../constit.../constituicao91.htm
10/09/2022.
Com uma forma diferenciada Fernando
Luiz Abrucio, um dos grandes estudiosos e articulistas pátrios da ciência
política e social da atualidade nos empresta seu olhar sobre a formação do
federalismo brasileiro em seu Livro os Barões da Federação – os governadores e
a redemocratização brasileira (ABRUCIO, 2006): “Somente com a Constituição de
1891, definidora da nova ordem republicana, foi adotada a estrutura federativa,
rompendo-se com a tradição do unitarismo imperial. Embora, o principal
idealizador da implantação da estrutura federativa, Rui Barbosa, tivesse em
mente o modelo americano, as origens e a forma assumida pelo federalismo brasileiro
foram bem distintas, ao contrário da experiência americana, em que havia
unidades territoriais autônomas antes do surgimento da União, no Brasil, como
notara Rui Barbosa, [...] tivemos União antes de ter estados, tivemos o todo
antes das partes”. E mais, o federalismo brasileiro nasceu, em grande medida,
do descontentamento ante ao centralismo imperial, ou seja, em prol da
descentralização, o que deu um sentido especial da palavra federalismo para o
vocabulário político brasileiro, que persiste até hoje. João Camilo de Oliveira
Torres, definiu bem essa situação:
“Afinal, federalismo entre nós quer
dizer apego ao espírito de autonomia; nos Estados Unidos, associação de estados
para defesa comum” (Torres, 1961:153).
Trago uma definição facilitadora e
mais popular do verbete Federalismo advinda do "vade mecum" brasil em
razão do acesso digital, que atende uma grande demanda da atual civilização, e
que permite uma melhor comparação e compreensão histórica:
“O federalismo implantado com a
Constituição de 1988 visa a disseminar competências e poderes aos entes
políticos: União, Estados federados, Municípios, Distrito Federal. Todos
dotados de autonomia política, administrativa e tributária. A partir de outubro
de 1988 o Município adquiriu a qualidade de ente federativo, o que não ocorria
antes. E, também, a nova Carta Magna estabeleceu áreas de atuação conjunta de
todos entes federativos, especialmente, em matérias de relevante interesse
social.” https://vademecumbrasil.com.br/palavra/federalismo
09/09/2022.
Destaco outra definição, essa de
caráter técnico-jurídico defendida por José Afonso da Silva em seu livro Curso
de Direito Constitucional Positivo, que assim define federalismo:
“O federalismo, como expressão do
Direito Constitucional, nasceu com a Constituição norte-americana de 1787.
Baseia-se na união de coletividades políticas autônomas. Quando se fala em
federalismo, em Direito Constitucional, quer-se referir a uma forma de estado,
denominado federação ou Estado federal, caracterizada pela união de
coletividades públicas dotadas de autonomia político-constitucional, autonomia
federativa” (SILVA, ed. 11ª,1996).
O Vocabulário Jurídico De Plácido e
Silva (2007), auxilia da seguinte forma: “O federalismo é uma espécie do gênero
forma de estado e se caracteriza por uma distribuição de competências
determinadas constitucionalmente entre um poder central e uma multiplicidade de
poderes periféricos que possibilita a acomodação harmônica entre interesses
nacionais e interesses regionais, e, eventualmente, no caso de dissensões,
dispõe de instituições competentes e capazes de solucionar as contendas
oriundas dessa diversidade de interesses, mantendo um laço de unidade entre os
entes subnacionais representados na ordem internacional como um Estado
único."
A explicação de Norberto, Nicola e
Gianfranco (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, ed. 11ª,1998) informa que: “princípio
constitucional no qual se baseia o Estado federal é a pluralidade de centros de
poder soberanos e coordenados entre eles, de modo tal que o Governo federal que
tem a competência sobre o inteiro território da federação, seja conferida uma
quantidade mínima de poderes, indispensável para garantir a unidade política e
econômica, e aos Estados federais que tem competência cada um sobre o próprio
território, sejam assinalados os demais poderes.”
Invoco a citação de Alfred Stepan,
contida em Para uma Nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia:
Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do Demos, Democracia, Federalismo
e Multinacionalismo (STEPAN, vol.42, n.2,1999), visando marcar a distinção
categórica tanto de forma quanto de conteúdo na configuração do amálgama de
inter-relacionamento do poder maior com as unidades constituídas, bem como, o
acesso e participação do cidadão no comando central, assim descrito:
“Uma outra importante distinção a
fazer é entre as
federações cujo propósito inicial é o
de "unir" [come
together] e aquelas cujo objetivo é o
de "manter a
união" [hold together]. A idéia
de uma federação
para "unir" baseia-se
evidentemente no modelo dos
Estados Unidos. Em 1787, na Convenção
da
Filadélfia, unidades até então
soberanas firmaram o
que William Riker denomina de
"pacto federativo”
para unir, combinando suas soberanias
em uma nova
federação que deixou poderes
residuais aos estados
federados. Um aspecto decisivo do
pacto federativo
para a soberania dos estados que
concordaram em se
unir foi o fato de que a construção
da nova federação incluiu certas características verticais e horizontais
que restringiram o conjunto dos
cidadãos da pólis na
esfera central [constrained the demos
at the center]”.
Marcia Soares e José Angelo Machado
em seu Livro Federalismo e Políticas Públicas (SOARES, MACHADO, Enap, 2018),
apontam para entendimento do federalismo, ainda na apresentação do exemplar, de
forma extremamente simples, mas eficaz: “Um termo essencial para a devida
compreensão do federalismo é a descentralização territorial do poder político.”
Na sequência, se socorrem na própria
coautora (SOARES, 2013), em conformação sofisticada para conceituar
federalismo, inclusive observando que há certa convergência na literatura sobre
o que é, ou melhor, o que deve ser o federalismo:
“Uma forma de organização do poder
político no Estado nacional caracterizado pela dupla autonomia territorial.
Isto significa a existência de dois níveis territoriais autônomos de governo:
um central (o governo nacional) e outro descentralizado (os governos
subnacionais). Os entes governamentais têm poderes únicos e concorrentes para
governarem sobre o mesmo território e povo, sendo que a União governa o
território nacional e seus cidadãos, enquanto as unidades subnacionais governam
uma parte delimitada do território nacional com seus habitantes. Ambos atuam
dentro de um campo pactuado de competências."
George Andersen na Obra Federalismo
uma introdução (ANDERSEN, 2009), apresenta o federalismo com muitas variedades
e contextos, afirmando:
“As federações diferem bastante
quanto à composição social, econômica e institucional. Incluem países muito
grandes e muito pequenos, países ricos e pobres, com população homogênea e
muito diversificada. Algumas federações são democracias bem sedimentadas ao
passo que outras têm histórias mais recentes e processos conturbados de
democratização.”.
Como mencionado acima o federalismo
pode ir de uma ponta a outra, a depender da engenharia institucional de cada
país. O arranjo pode parecer único mais não é, e sua forma de aplicação,
organização e coordenação, vai fazer toda diferença nos resultados apresentados
e realmente alcançados na federação, até porque não se pode esquecer e
desprezar a alta complexidade do tema.
O federalismo não precisa ficar
acorrentado nos porões da história e/ou obstruído no presente, aliás, não deve,
ele pode ser flexível a depender da sua construção e desenvolvimento como um
sistema institucional dentro do cinturão das fronteiras nacionais.
Paul Pierson (1995) explica em seu
clássico artigo: “Nos sistemas federais, as autoridades no nível central
coexistem com as autoridades nas “unidades constituintes” territorialmente
distintas da federação.”
[...]
“Eles podem competir uns com os
outros, buscar projetos independentes que funcionem com objetivos cruzados ou
cooperar para alcançar fins que não poderiam obter sozinhos. A sua interdependência
pode permitir-lhes recorrer uns aos outros em busca de ideias e ajuda, ou
enredá-los em estruturas institucionais e políticas de complexidade
bizantinas.”
Constatam os Profs. Eduardo José Grin
, Antônio Sérgio Araújo Fernandes, Catarina Ianni Segatto, Marco Antônio
Carvalho Teixeira, Alex Bruno Ferreira Marques do Nascimento e Paula Chies
Schommer (2022), em artigo intitulado A Pandemia e o Futuro do Federalismo
Brasileiro (GRIN, FERNANDES, SEGATTO, TEIXEIRA, MARQUES, SCHOMMER, FGV EAESP,
Cadernos Gestão Pública e Cidadania, VoL. 27, n. 87, Mai-Ago, 2022 ), que
relata: “Como resultado dessas quase três décadas de mudanças, construiu-se um
modelo mais cooperativo de federalismo no Brasil, que combinou compartilhamento
de competências, descentralização da implementação das políticas e coordenação
nacional em que os mecanismos redistributivos e de indução foram centrais.”
Os pesquisadores Marcia Soares e José
Angelo Machado (SOARES, MACHADO, Enap, 2018), não se esquivam de um exame que
vai além das regras e métodos embutidos no "federalismo literal" e
lembram:
“Para delinear o significado de
federalismo, entende-se ser fundamental abandonar sua concepção meramente
formalista, ou seja, do federalismo como conjunto de preceitos constitucionais,
perspectiva que foi dominante até meados do último século e que ainda tem
reflexos importantes na atualidade. Não se pretende com isso desprezar a
importância do pacto constitucional na conformação de um Estado de tipo
federal, mas somente sinalizar que a divisão territorial do poder entre
diferentes níveis de governo que o caracteriza pode depender, em muitos casos,
de uma complexa combinação de atributos institucionais nem sempre inserida no
texto constitucional. É exemplar dessa situação a adoção do federalismo em países
em que a separação de áreas de atuação entre níveis de governo não é objeto da
constituição, como ocorre no caso espanhol.”
E por derradeiro, e não menos
importante é o fator/aspecto que considero definidor aprendido em sala de aula
com o Professor Fernando Abrucio, que ensina de forma decisiva e recorrente,
com incidência direta ou indireta, que nunca se deve desprezar em uma análise
mesmo que rasa sobre o tema, o amplo alcance, diversidade e complexidade do
arranjo institucional denominado Federalismo.
Sem ter a mínima intenção de esgotar
a matéria, concluo a Parte 1, para em outro momento retornar analisando a Parte
2 – Evolução, e complementar com a Parte 3 que tratará dos Efeitos do
Federalismo.
Agradeço a todos que dedicaram seu
tempo para lerem e aguardo contribuir, mesmo de forma simples, para a reflexão
de um tema tão importante e caro para nação brasileira.
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