sexta-feira, 21 de outubro de 2022

BUROCRACIA DE NÍVEL DE RUA: AGENTE ESTATAL COMO IMPLEMENTADOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS.

 

Por Eduardo Fernandes da Paz




Após a Constituição Federal/88 os estudos e aprendizagens sobre burocracia de nível de rua quando se trabalha o tópico da implementação de políticas públicas tem ganhado robustez, sobretudo no campo da Ciência Política e da Administração Pública.

Consagrada e reconhecida globalmente à produção acadêmica de autoria de Michael Lipsky que foi professor de Ciência Política na University of Wisconsin e no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Em 1969 Lipsky apresenta o artigo Toward a theory of street-level bureaucracy, no encontro anual da American Association of Political Science (APSA), o qual é publicado como texto para discussão do Institute for Research on Poverty da Universidade de Wisconsin.

No ano 1980 Lipsky concebe o livro denominado Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Service, traduzido (por Arthur Eduardo Moura da Cunha) e publicado com muito zelo e competência pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), no ano de 2019, incentivado, creio eu, pela militância da Profª Gabriela Lotta, sendo a obra Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços públicos, aguardada à época com expectativa no âmbito acadêmico brasileiro e outros segmentos para ingressar na literatura nacional.

Lipsky apresenta vários debates e definições de mérito inspiradoras, mas creio que nesse momento o enunciado mais importante para introduzir o tema e atrair para argumentação de forma explícita é a elaboração da categorização de agentes públicos definidos como burocratas de nível de rua que se conectam diretamente com o mecanismo das políticas públicas processadas. Abarcando ressaltar, a existência de elementos de identidade entre todos esses agentes.

Registram os pesquisadores, que com base nos princípios gerais da Constituição de 1988, as políticas públicas, mormente, as sociais, organizam-se pelos chamados de Sistemas Nacionais de Políticas Públicas, estruturas institucionais montadas para compatibilizar a descentralização das políticas públicas com a coordenação federal, tanto em termos de articulação dos entes federativos, como também a que se refere ao apoio financeiro e técnico aos governos subnacionais (FRANZESE & ABRUCIO, 2013: BICHIR, SIMONI & PEREIRA, 2020).

Complementa Andreia Souza R. Schneider Nunes partindo do pressuposto de que política pública possui natureza coletiva enquanto categoria jurídica, pois é a partir do direito que se estrutura o quadro institucional de determinado programa de ação governamental, a fim de que esteja em conformidade a Constituição Federal no sentido da concretização dos direitos fundamentais e projeção da cidadania. (NUNES, PUC/SP, 2020).

Fábio Konder Comparato considera a política pública como atividade, outrora advinda da teoria da empresa e hoje também empregada na esfera governamental. Conceitua como “(...) um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado. (...) A política, como conjunto de normas e atos, é unificada pela sua finalidade” (COMPARATO, 1998).

Pretende o texto com brevidade, apresentar a trajetória histórica, conceitos chaves e compartilhar a missão e perfil dessas atividades de extrema importância para os cidadãos e as cidades individualmente ou municípios aglutinados (p. ex. regiões metropolitanas), somado aos estados federados e continuando nessa lógica de percurso até atingir o poder central, enfim, para todo sistema público e usuários/clientes que estão na ponta aguardando serem legitimamente atendidos.

Impõe-se para tanto, esclarecer a questão conceitual sobre burocracia, na oportunidade optando pela oferta de Max Weber sobre o assunto, que propôs:

“consiste em uma forma organizacional de um sistema sociopolítico administrada de forma hierárquica, com base na autoridade racional-legal, em que as normas prevalecem sobre os interesses individuais e a discricionariedade de seus agentes.” (PEREIRA e MOTTA, 1987; PIRES, 2009; WEBER, 1968).

Vários países do mundo moderno construíram um arquétipo de burocracia que, tal qual definida por Max Weber, seguiria os princípios de impessoalidade nas relações, hierarquia de autoridade, padronização das rotinas e procedimentos, profissionalização, meritocracia e especialização das funções. Este conjunto de características levaria a um determinado comportamento padrão dos funcionários, a partir do qual “o espaço para discernimento e julgamento pessoal seria reduzido ou inexistente” (DE BONIS e PACHECO, 2010).

Neste constructo, merece atenção visando abranger uma melhor compreensão da exposição de um marco explicativo para mais importante indagação desta composição: do que se trata burocracia e burocrata de nível de rua?

Mas antes, é necessário passar pela linha histórica, objetivando dar coesão ao texto, por ser a melhor prática em base epistemológica. Assim sendo, destaco o itinerário como abaixo estruturado mesmo que resumidamente, para no desenvolvimento e ao final atingir a pretensão do texto.

Herbert Simon (1947) chamou atenção para a necessidade de um melhor entendimento sobre a posição de poder e influência nos processos organizacionais dos trabalhadores do “chão de fábrica”. Michel Crozier (1964), por sua vez, em um estudo de caso de duas burocracias francesas, procurou entender as dinâmicas internas de poder, combinando análises sobre atores e subgrupos organizacionais com disputas em torno da rotinização de processos ou da manutenção do poder discricionário desses atores. James Q. Wilson (1967) identificou uma série de “problemas” inerentes à burocracia, tais como o problema da accountability e do controle, da equidade e do tratamento igualitário, da eficiência e da responsividade aos cidadãos. Outra referência importante, Herbert Kaufman (1967), analisando o serviço florestal estadunidense, procurou compreender como os guardas florestais apresentavam um comportamento relativamente homogêneo, ainda que atuando em um arranjo organizacional bastante descentralizado. Essas obras de referência abriram caminho para um conjunto de estudos empíricos observacionais nas décadas de 1960, 1970 e 1980 que buscaram compreender o funcionamento prático e cotidiano de organizações implementadoras, como as forças policiais e os órgãos do sistema de justiça e garantia de direitos (Bittner, 1967; van Maanen, 1973; Brown, 1981; Silbey, 1981). Estes estudos indicaram que uma descrição mais acurada do funcionamento rotineiro de uma burocracia pública deveria contemplar: i) decisões, práticas e comportamentos nem sempre prescritos ou autorizados pela lei; ii) ações baseadas em respostas a situações específicas, em vez de concepções genéricas dos objetivos e trabalhos a serem desenvolvidos; iii) interpenetração de fatores culturais, organizacionais e associados à estrutura social; e iv) variações entre diferentes organizações, assim como entre agentes de uma mesma organização. Ao se adensarem em um conjunto vasto de estudos empíricos, esses achados contribuíram para uma percepção crítica de que leis, regras e mandatos formais não se transformam, de forma automática ou simples, em ação nas linhas de frente do serviço público. Uma série de elementos intermediários se colocou no trajeto Contribuições dos Estudos Sobre Burocracia de Nível de Rua entre as regras e estruturas formais e o comportamento cotidiano dos agentes de implementação (Pires, 2017). Como consequência, uma maior atenção aos agentes de ponta, a suas condutas cotidianas e aos usos da discricionariedade se fez incontornável (CAVALCANTI, LOTTA & PIRES, 2018).

A década de 80 vai clarear com maior vigor o reconhecimento da posição estratégica dos burocratas de nível de rua consolidando sua incontestabilidade para as políticas públicas.

A forte alegação de Evelyn Brodkin (2012; 2015), Street-Level Bureaucracy teve o mérito de fazer com que duas literaturas até então isoladas – a literatura sobre discricionariedade burocrática e a sobre implementação de políticas públicas – pudessem conversar entre si.

Retornando para tarefa de desvelar o questionamento sobre o que se refere Burocracia e Burocrata de nível de rua, gostaria de abordar como primeiro dado elucidativo sua distinção do que realmente é, e como pode aparentar ser. Pode parecer um termo pejorativo e defectivo, contudo ele tem uma definição, direção e aplicabilidade inversa correndo na raia do enaltecedor, dignificante e de extrema necessidade para em seguida demonstrar seu alcance significativo.

Lipsky (2010) esclarece que a burocracia de nível de rua é caracterizada por desempenhar seu trabalho sob certas condições subótimas. Isto é, para além da interação direta com os cidadãos e do certo grau de autonomia e discricionariedade em suas ações, esses burocratas não conseguem desempenhar seus trabalhos de acordo com as concepções ideais em virtude das limitações de seus trabalhos: faltam recursos; o tempo e as informações disponíveis são insuficientes; e há pressões ambíguas, quando não conflitantes, exercidas pelos seus supervisores e pelos cidadãos.

Reforço como forma metodológica à noção sobre o presente tema, invocando o ensaio de Lipsky e outros, que demonstra o elenco dos burocratas implementadores identificados como “burocratas de nível de rua”: agentes estatais que, diferentemente dos burocratas de médio escalão (diretores, gerentes, coordenadores etc.), prestam seus serviços diretamente ao usuário-cidadão ou monitoram os serviços públicos prestados por terceiros (HAM e Hill, 1993; LIPSKY, 1980).

Segundo Lipsky, para os burocratas que atendem diariamente os usuários, chamados na literatura também de burocratas da linha de frente ou burocratas das esquinas (Oliveira, 2012), a exemplo de policiais, assistentes sociais, enfermeiros, médicos, professores, juízes etc., torna-se inevitável adotar ações discricionárias para garantir a aplicação das políticas no plano administrativo. As organizações do serviço público que empregam um número significativo de burocratas de nível de rua em relação à sua força total de trabalho são chamadas burocracia de nível de rua.

Lipsky (1980) registra em nota de rodapé, uma constatação que faz toda diferença, assim transcrita: “Por outro lado, nem todos trabalhadores das burocracias de nível de rua, são burocratas de nível de rua (p. ex., escriturário em um departamento de assistência social ou de polícia com atribuições administrativas de rotina).”

Outro importante ponto a ser revisitado é o invólucro da burocracia de linha de frente que vem a ser o “fator da discricionariedade”, que inegavelmente permeia grande parte da estrutura, como podemos constatar abaixo.

Mais do que inerente e inevitável, a discricionariedade é muitas vezes desejável ao desempenho das funções da burocracia de linha de frente, que lida continuamente com situações imprevistas e emergentes. Nas palavras de Lipsky (2010, p. 15, tradução nossa), “até certo ponto, a sociedade busca não apenas imparcialidade de seus órgãos públicos, mas também compaixão para circunstâncias especiais e flexibilidade para lidar com elas”. Assim, a burocracia de nível de rua encontra-se muitas vezes em uma situação paradoxal: de um lado, suas funções são frequentemente “programadas”, no sentido de serem realizadas para atingir os resultados desejados de seus órgãos públicos ou das políticas públicas; de outro lado, seu trabalho requer um alto grau de adaptação e responsividade a casos individuais complexos. (Orgs. PIRES, LOTTA, OLIVEIRA, IPEA, 2018).

Como o próprio autor afirma, a palavra burocracia implica algum conjunto de autoridades e normas a serem seguidas, enquanto a expressão nível de rua denota algum distanciamento dessas autoridades e aproximação a casos individuais mais Contribuições dos Estudos Sobre Burocracia de Nível de Rua complexos (Lipsky, 2010, p. 12). É neste sentido que os burocratas de nível de rua vivenciam a controvérsia política, na medida em que são duplamente pressionados: pelas demandas de serviços para cumprirem metas; e pelos cidadãos para aumentarem seu acesso. (Orgs. PIRES, LOTTA, OLIVEIRA, IPEA, 2018).

Pela correlação que há com a investigação aponto ao fim e ao cabo a observação dos Profs. da FGV/SP, Bernardo Oliveira Buta e Marco Antônio Carvalho Teixeira, que afirmam: “os atores estatais estão em um contínuo processo de negociação com a sociedade.” (BUTA & TEIXEIRA, Revista Organizações e Sociedades, 2020).

Nota: As referências bibliográficas e sites pesquisados estão no artigo original.

sábado, 17 de setembro de 2022

FEDERALISMO PELA PERSPECTIVA DA ORIGEM


Por Eduardo Fernandes da Paz

Doutorando em Administração Pública e Governo/FGV-SP








Não é minha pretensão com o artigo analisar governos, partidos políticos, candidatos ou conteúdos programáticos, sobretudo em razão do período político-eleitoral, essa tarefa passo (deixo) democraticamente para você leitor.

A motivação aqui é outra, ou seja, projetar nessa construção o federalismo como um fenômeno da divisão de poder, com marcas originárias da combinação de descentralização e autonomia territorial entre o poder central e demais entes subnacionais de forma a compor um arranjo institucional complexo, mas necessário no processo de manutenção da nação, apesar de sua imperfeição e instabilidade.

Recorro ao ensinamento, em tradução livre, de Daniel Elazar (1987), onde contém a afirmação que o “federalismo é bastante antigo, remetendo a documentos de antigas tribos de Israel no século 12 a.C. e seu entendimento ao longo dos séculos variou imensamente, inclusive sendo utilizado de forma intercambiável com o termo confederação.”

A produção no plano teórico sobre a investigação apresenta diversas fases e autores, que passo a descrever algumas etapas e instituidores pela ótica cronológica.

A historiografia cita a marca do pensamento althusiano. Althusius (1557-1638), filósofo calvinista alemão, abordou em seu livro ‘Política’ as temáticas mais relevantes de seu tempo e apresentou a visão moderna da primazia da letra da lei sobre a governança perpétua e incontestável da autoridade ora no poder (HUEGLIN e FENNA, 2006).

Os autores Carlos Sérgio Gurgel da Silva e Yan Pedro Pereira Guedes complementam sobre Althusius:”a origem do federalismo, portanto, não remonta apenas à Constituição Norte-americana”. Johannes Althusius é tido como o primeiro federalista, o primeiro a desenvolver de maneira teórica o sistema de organização estatal firmado nos princípios pactuais da política. Mais especificamente, Johannes Althusius é a origem do referencial teórico do federalismo, o pai do federalismo moderno. Seu pensamento foi assimilado pelos americanos. Tendo o desenvolvimento do seu pensamento em sua obra “Política” (SILVA e GUEDES, 2017).

Outrossim, Camila Penna traz como manchete na escrita do artigo sobre o pensamento federalista estadunidense a seguinte informação: “Identifica-se notadamente uma presença das ideias de Locke e Montesquieu, e em menor medida de Rousseau, nos artigos escritos por Jay, Hamilton e Madison. É possível identificar elementos das obras destes pensadores também nos argumentos dos antifederalistas – muitos dos quais eram temas abordados no escopo dos artigos. Importa observar que as ideias de Locke, Montesquieu e Rousseau balizavam as discussões teórico-políticas da época e tiveram implicações práticas para a construção do modelo de república dos Estados Unidos. O trabalho tem como objetivo a identificação da presença das ideias de Locke, Rousseau e Montesquieu – contidas em suas respectivas obras: “Segundo Tratado sobre o Governo” (1690), “Do Contrato Social” (1762) e “O Espírito das Leis” (1748) – no pensamento dos federalistas, tal como expresso em seus 85 artigos (1787-1788),” finaliza Camila (PENNA, janeiro-junho, 2011).

Já nos registros de Bobbio e colaboradores o pensamento da teoria do federalismo de Immanuel Kant (1724–1804) se apresentou na vanguarda com a seguinte característica: “A primeira formulação de alguns elementos essenciais da teoria federalista, entendida como doutrina social global, se encontra no início da era do nacionalismo nos escritos políticos, jurídicos e filosófico históricos de Kant” (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, Unb, ed.11ª,1998).

Vale ressaltar, que não se pode relegar a segundo plano na escala da concepção e prática as fórmulas, teorias e conceitos como "walfare state", "checks and balances," "self-rule plus shared rule," " shared decision make," "tendência centrípeda e centrífuga," "recentralização," "análise do embate," e tantos outros, pois foram e/ou continuam ser de grande valia para aparelhar na origem ou na sequência o entendimento e desenvolvimento, bem como, uma compreensão holística do Federalismo.

John Jay, Alexander Hamilton e James Madison, como acima já citado, formularam abstrações transformadas em um ideário e traduzidas para militância escrita de convencimento que foram definitivas para conceber o Estado Federado, com seus assentos nos periódicos publicados primeiramente no “Independent Journal”, de Nova York, e posteriormente em vários jornais dos Estados Unidos, os ensaios denominados “Artigos Federalistas” 1787-1788, compilados em livro com o mesmo título, e que nos oferecem a primeira e uma das mais completas formulações da teoria do Estado federal.

Como exemplo, apresento o arcabouço federativo inserido na CF/1891, dentro da tecnicidade de base constitucional:

“Art. 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.” http://www.planalto.gov.br/.../constit.../constituicao91.htm 10/09/2022.

Com uma forma diferenciada Fernando Luiz Abrucio, um dos grandes estudiosos e articulistas pátrios da ciência política e social da atualidade nos empresta seu olhar sobre a formação do federalismo brasileiro em seu Livro os Barões da Federação – os governadores e a redemocratização brasileira (ABRUCIO, 2006): “Somente com a Constituição de 1891, definidora da nova ordem republicana, foi adotada a estrutura federativa, rompendo-se com a tradição do unitarismo imperial. Embora, o principal idealizador da implantação da estrutura federativa, Rui Barbosa, tivesse em mente o modelo americano, as origens e a forma assumida pelo federalismo brasileiro foram bem distintas, ao contrário da experiência americana, em que havia unidades territoriais autônomas antes do surgimento da União, no Brasil, como notara Rui Barbosa, [...] tivemos União antes de ter estados, tivemos o todo antes das partes”. E mais, o federalismo brasileiro nasceu, em grande medida, do descontentamento ante ao centralismo imperial, ou seja, em prol da descentralização, o que deu um sentido especial da palavra federalismo para o vocabulário político brasileiro, que persiste até hoje. João Camilo de Oliveira Torres, definiu bem essa situação:

“Afinal, federalismo entre nós quer dizer apego ao espírito de autonomia; nos Estados Unidos, associação de estados para defesa comum” (Torres, 1961:153).

Trago uma definição facilitadora e mais popular do verbete Federalismo advinda do "vade mecum" brasil em razão do acesso digital, que atende uma grande demanda da atual civilização, e que permite uma melhor comparação e compreensão histórica:

“O federalismo implantado com a Constituição de 1988 visa a disseminar competências e poderes aos entes políticos: União, Estados federados, Municípios, Distrito Federal. Todos dotados de autonomia política, administrativa e tributária. A partir de outubro de 1988 o Município adquiriu a qualidade de ente federativo, o que não ocorria antes. E, também, a nova Carta Magna estabeleceu áreas de atuação conjunta de todos entes federativos, especialmente, em matérias de relevante interesse social.” https://vademecumbrasil.com.br/palavra/federalismo 09/09/2022.

Destaco outra definição, essa de caráter técnico-jurídico defendida por José Afonso da Silva em seu livro Curso de Direito Constitucional Positivo, que assim define federalismo:

“O federalismo, como expressão do Direito Constitucional, nasceu com a Constituição norte-americana de 1787. Baseia-se na união de coletividades políticas autônomas. Quando se fala em federalismo, em Direito Constitucional, quer-se referir a uma forma de estado, denominado federação ou Estado federal, caracterizada pela união de coletividades públicas dotadas de autonomia político-constitucional, autonomia federativa” (SILVA, ed. 11ª,1996).

O Vocabulário Jurídico De Plácido e Silva (2007), auxilia da seguinte forma: “O federalismo é uma espécie do gênero forma de estado e se caracteriza por uma distribuição de competências determinadas constitucionalmente entre um poder central e uma multiplicidade de poderes periféricos que possibilita a acomodação harmônica entre interesses nacionais e interesses regionais, e, eventualmente, no caso de dissensões, dispõe de instituições competentes e capazes de solucionar as contendas oriundas dessa diversidade de interesses, mantendo um laço de unidade entre os entes subnacionais representados na ordem internacional como um Estado único."

A explicação de Norberto, Nicola e Gianfranco (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, ed. 11ª,1998) informa que: “princípio constitucional no qual se baseia o Estado federal é a pluralidade de centros de poder soberanos e coordenados entre eles, de modo tal que o Governo federal que tem a competência sobre o inteiro território da federação, seja conferida uma quantidade mínima de poderes, indispensável para garantir a unidade política e econômica, e aos Estados federais que tem competência cada um sobre o próprio território, sejam assinalados os demais poderes.”

Invoco a citação de Alfred Stepan, contida em Para uma Nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia: Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do Demos, Democracia, Federalismo e Multinacionalismo (STEPAN, vol.42, n.2,1999), visando marcar a distinção categórica tanto de forma quanto de conteúdo na configuração do amálgama de inter-relacionamento do poder maior com as unidades constituídas, bem como, o acesso e participação do cidadão no comando central, assim descrito:

“Uma outra importante distinção a fazer é entre as

federações cujo propósito inicial é o de "unir" [come

together] e aquelas cujo objetivo é o de "manter a

união" [hold together]. A idéia de uma federação

para "unir" baseia-se evidentemente no modelo dos

Estados Unidos. Em 1787, na Convenção da

Filadélfia, unidades até então soberanas firmaram o

que William Riker denomina de "pacto federativo”

para unir, combinando suas soberanias em uma nova

federação que deixou poderes residuais aos estados

federados. Um aspecto decisivo do pacto federativo

para a soberania dos estados que concordaram em se

unir foi o fato de que a construção da nova federação incluiu certas características verticais e horizontais

que restringiram o conjunto dos cidadãos da pólis na

esfera central [constrained the demos at the center]”.

Marcia Soares e José Angelo Machado em seu Livro Federalismo e Políticas Públicas (SOARES, MACHADO, Enap, 2018), apontam para entendimento do federalismo, ainda na apresentação do exemplar, de forma extremamente simples, mas eficaz: “Um termo essencial para a devida compreensão do federalismo é a descentralização territorial do poder político.”

Na sequência, se socorrem na própria coautora (SOARES, 2013), em conformação sofisticada para conceituar federalismo, inclusive observando que há certa convergência na literatura sobre o que é, ou melhor, o que deve ser o federalismo:

“Uma forma de organização do poder político no Estado nacional caracterizado pela dupla autonomia territorial. Isto significa a existência de dois níveis territoriais autônomos de governo: um central (o governo nacional) e outro descentralizado (os governos subnacionais). Os entes governamentais têm poderes únicos e concorrentes para governarem sobre o mesmo território e povo, sendo que a União governa o território nacional e seus cidadãos, enquanto as unidades subnacionais governam uma parte delimitada do território nacional com seus habitantes. Ambos atuam dentro de um campo pactuado de competências."

George Andersen na Obra Federalismo uma introdução (ANDERSEN, 2009), apresenta o federalismo com muitas variedades e contextos, afirmando:

“As federações diferem bastante quanto à composição social, econômica e institucional. Incluem países muito grandes e muito pequenos, países ricos e pobres, com população homogênea e muito diversificada. Algumas federações são democracias bem sedimentadas ao passo que outras têm histórias mais recentes e processos conturbados de democratização.”.

Como mencionado acima o federalismo pode ir de uma ponta a outra, a depender da engenharia institucional de cada país. O arranjo pode parecer único mais não é, e sua forma de aplicação, organização e coordenação, vai fazer toda diferença nos resultados apresentados e realmente alcançados na federação, até porque não se pode esquecer e desprezar a alta complexidade do tema.

O federalismo não precisa ficar acorrentado nos porões da história e/ou obstruído no presente, aliás, não deve, ele pode ser flexível a depender da sua construção e desenvolvimento como um sistema institucional dentro do cinturão das fronteiras nacionais.

Paul Pierson (1995) explica em seu clássico artigo: “Nos sistemas federais, as autoridades no nível central coexistem com as autoridades nas “unidades constituintes” territorialmente distintas da federação.”

[...]

“Eles podem competir uns com os outros, buscar projetos independentes que funcionem com objetivos cruzados ou cooperar para alcançar fins que não poderiam obter sozinhos. A sua interdependência pode permitir-lhes recorrer uns aos outros em busca de ideias e ajuda, ou enredá-los em estruturas institucionais e políticas de complexidade bizantinas.”

Constatam os Profs. Eduardo José Grin , Antônio Sérgio Araújo Fernandes, Catarina Ianni Segatto, Marco Antônio Carvalho Teixeira, Alex Bruno Ferreira Marques do Nascimento e Paula Chies Schommer (2022), em artigo intitulado A Pandemia e o Futuro do Federalismo Brasileiro (GRIN, FERNANDES, SEGATTO, TEIXEIRA, MARQUES, SCHOMMER, FGV EAESP, Cadernos Gestão Pública e Cidadania, VoL. 27, n. 87, Mai-Ago, 2022 ), que relata: “Como resultado dessas quase três décadas de mudanças, construiu-se um modelo mais cooperativo de federalismo no Brasil, que combinou compartilhamento de competências, descentralização da implementação das políticas e coordenação nacional em que os mecanismos redistributivos e de indução foram centrais.”

Os pesquisadores Marcia Soares e José Angelo Machado (SOARES, MACHADO, Enap, 2018), não se esquivam de um exame que vai além das regras e métodos embutidos no "federalismo literal" e lembram:

“Para delinear o significado de federalismo, entende-se ser fundamental abandonar sua concepção meramente formalista, ou seja, do federalismo como conjunto de preceitos constitucionais, perspectiva que foi dominante até meados do último século e que ainda tem reflexos importantes na atualidade. Não se pretende com isso desprezar a importância do pacto constitucional na conformação de um Estado de tipo federal, mas somente sinalizar que a divisão territorial do poder entre diferentes níveis de governo que o caracteriza pode depender, em muitos casos, de uma complexa combinação de atributos institucionais nem sempre inserida no texto constitucional. É exemplar dessa situação a adoção do federalismo em países em que a separação de áreas de atuação entre níveis de governo não é objeto da constituição, como ocorre no caso espanhol.”

E por derradeiro, e não menos importante é o fator/aspecto que considero definidor aprendido em sala de aula com o Professor Fernando Abrucio, que ensina de forma decisiva e recorrente, com incidência direta ou indireta, que nunca se deve desprezar em uma análise mesmo que rasa sobre o tema, o amplo alcance, diversidade e complexidade do arranjo institucional denominado Federalismo.

Sem ter a mínima intenção de esgotar a matéria, concluo a Parte 1, para em outro momento retornar analisando a Parte 2 – Evolução, e complementar com a Parte 3 que tratará dos Efeitos do Federalismo.

Agradeço a todos que dedicaram seu tempo para lerem e aguardo contribuir, mesmo de forma simples, para a reflexão de um tema tão importante e caro para nação brasileira.



OBS: A citação da referência bibliográfica encontra-se no artigo original.