Por Eduardo Fernandes da Paz
Após a Constituição Federal/88 os
estudos e aprendizagens sobre burocracia de nível de rua quando se trabalha o
tópico da implementação de políticas públicas tem ganhado robustez, sobretudo
no campo da Ciência Política e da Administração Pública.
Consagrada e reconhecida globalmente
à produção acadêmica de autoria de Michael Lipsky que foi professor de Ciência
Política na University of Wisconsin e no Massachusetts Institute of Technology
(MIT). Em 1969 Lipsky apresenta o artigo Toward a theory of street-level
bureaucracy, no encontro anual da American Association of Political Science
(APSA), o qual é publicado como texto para discussão do Institute for Research
on Poverty da Universidade de Wisconsin.
No ano 1980 Lipsky concebe o livro
denominado Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public
Service, traduzido (por Arthur Eduardo Moura da Cunha) e publicado com muito
zelo e competência pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), no ano
de 2019, incentivado, creio eu, pela militância da Profª Gabriela Lotta, sendo
a obra Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços públicos,
aguardada à época com expectativa no âmbito acadêmico brasileiro e outros
segmentos para ingressar na literatura nacional.
Lipsky apresenta vários debates e
definições de mérito inspiradoras, mas creio que nesse momento o enunciado mais
importante para introduzir o tema e atrair para argumentação de forma explícita
é a elaboração da categorização de agentes públicos definidos como burocratas
de nível de rua que se conectam diretamente com o mecanismo das políticas
públicas processadas. Abarcando ressaltar, a existência de elementos de
identidade entre todos esses agentes.
Registram os pesquisadores, que com
base nos princípios gerais da Constituição de 1988, as políticas públicas,
mormente, as sociais, organizam-se pelos chamados de Sistemas Nacionais de
Políticas Públicas, estruturas institucionais montadas para compatibilizar a
descentralização das políticas públicas com a coordenação federal, tanto em
termos de articulação dos entes federativos, como também a que se refere ao
apoio financeiro e técnico aos governos subnacionais (FRANZESE & ABRUCIO,
2013: BICHIR, SIMONI & PEREIRA, 2020).
Complementa Andreia Souza R. Schneider Nunes partindo do pressuposto de
que política pública possui natureza coletiva enquanto categoria jurídica, pois
é a partir do direito que se estrutura o quadro institucional de determinado
programa de ação governamental, a fim de que esteja em conformidade a
Constituição Federal no sentido da concretização dos direitos fundamentais e
projeção da cidadania. (NUNES, PUC/SP, 2020).
Fábio Konder Comparato considera a
política pública como atividade, outrora advinda da teoria da empresa e hoje
também empregada na esfera governamental. Conceitua como “(...) um conjunto
organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado.
(...) A política, como conjunto de normas e atos, é unificada pela sua
finalidade” (COMPARATO, 1998).
Pretende o texto com brevidade,
apresentar a trajetória histórica, conceitos chaves e compartilhar a missão e
perfil dessas atividades de extrema importância para os cidadãos e as cidades
individualmente ou municípios aglutinados (p. ex. regiões metropolitanas),
somado aos estados federados e continuando nessa lógica de percurso até atingir
o poder central, enfim, para todo sistema público e usuários/clientes que estão
na ponta aguardando serem legitimamente atendidos.
Impõe-se para tanto, esclarecer a
questão conceitual sobre burocracia, na oportunidade optando pela oferta de Max
Weber sobre o assunto, que propôs:
“consiste em uma forma organizacional
de um sistema sociopolítico administrada de forma hierárquica, com base na
autoridade racional-legal, em que as normas prevalecem sobre os interesses
individuais e a discricionariedade de seus agentes.” (PEREIRA e MOTTA, 1987;
PIRES, 2009; WEBER, 1968).
Vários países do mundo moderno
construíram um arquétipo de burocracia que, tal qual definida por Max Weber,
seguiria os princípios de impessoalidade nas relações, hierarquia de
autoridade, padronização das rotinas e procedimentos, profissionalização,
meritocracia e especialização das funções. Este conjunto de características
levaria a um determinado comportamento padrão dos funcionários, a partir do
qual “o espaço para discernimento e julgamento pessoal seria reduzido ou
inexistente” (DE BONIS e PACHECO, 2010).
Neste constructo, merece atenção
visando abranger uma melhor compreensão da exposição de um marco explicativo
para mais importante indagação desta composição: do que se trata burocracia e
burocrata de nível de rua?
Mas antes, é necessário passar pela
linha histórica, objetivando dar coesão ao texto, por ser a melhor prática em
base epistemológica. Assim sendo, destaco o itinerário como abaixo estruturado
mesmo que resumidamente, para no desenvolvimento e ao final atingir a pretensão
do texto.
Herbert Simon (1947) chamou atenção
para a necessidade de um melhor entendimento sobre a posição de poder e
influência nos processos organizacionais dos trabalhadores do “chão de
fábrica”. Michel Crozier (1964), por sua vez, em um estudo de caso de duas
burocracias francesas, procurou entender as dinâmicas internas de poder,
combinando análises sobre atores e subgrupos organizacionais com disputas em
torno da rotinização de processos ou da manutenção do poder discricionário
desses atores. James Q. Wilson (1967) identificou uma série de “problemas”
inerentes à burocracia, tais como o problema da accountability e do controle,
da equidade e do tratamento igualitário, da eficiência e da responsividade aos
cidadãos. Outra referência importante, Herbert Kaufman (1967), analisando o
serviço florestal estadunidense, procurou compreender como os guardas
florestais apresentavam um comportamento relativamente homogêneo, ainda que
atuando em um arranjo organizacional bastante descentralizado. Essas obras de
referência abriram caminho para um conjunto de estudos empíricos observacionais
nas décadas de 1960, 1970 e 1980 que buscaram compreender o funcionamento
prático e cotidiano de organizações implementadoras, como as forças policiais e
os órgãos do sistema de justiça e garantia de direitos (Bittner, 1967; van
Maanen, 1973; Brown, 1981; Silbey, 1981). Estes estudos indicaram que uma
descrição mais acurada do funcionamento rotineiro de uma burocracia pública
deveria contemplar: i) decisões, práticas e comportamentos nem sempre
prescritos ou autorizados pela lei; ii) ações baseadas em respostas a situações
específicas, em vez de concepções genéricas dos objetivos e trabalhos a serem
desenvolvidos; iii) interpenetração de fatores culturais, organizacionais e
associados à estrutura social; e iv) variações entre diferentes organizações,
assim como entre agentes de uma mesma organização. Ao se adensarem em um
conjunto vasto de estudos empíricos, esses achados contribuíram para uma
percepção crítica de que leis, regras e mandatos formais não se transformam, de
forma automática ou simples, em ação nas linhas de frente do serviço público.
Uma série de elementos intermediários se colocou no trajeto Contribuições dos
Estudos Sobre Burocracia de Nível de Rua entre as regras e estruturas formais e
o comportamento cotidiano dos agentes de implementação (Pires, 2017). Como
consequência, uma maior atenção aos agentes de ponta, a suas condutas
cotidianas e aos usos da discricionariedade se fez incontornável (CAVALCANTI,
LOTTA & PIRES, 2018).
A década de 80 vai clarear com maior
vigor o reconhecimento da posição estratégica dos burocratas de nível de rua
consolidando sua incontestabilidade para as políticas públicas.
A forte alegação de Evelyn Brodkin
(2012; 2015), Street-Level Bureaucracy teve o mérito de fazer com que duas
literaturas até então isoladas – a literatura sobre discricionariedade
burocrática e a sobre implementação de políticas públicas – pudessem conversar
entre si.
Retornando para tarefa de desvelar o
questionamento sobre o que se refere Burocracia e Burocrata de nível de rua,
gostaria de abordar como primeiro dado elucidativo sua distinção do que
realmente é, e como pode aparentar ser. Pode parecer um termo pejorativo e
defectivo, contudo ele tem uma definição, direção e aplicabilidade inversa
correndo na raia do enaltecedor, dignificante e de extrema necessidade para em
seguida demonstrar seu alcance significativo.
Lipsky (2010) esclarece que a
burocracia de nível de rua é caracterizada por desempenhar seu trabalho sob
certas condições subótimas. Isto é, para além da interação direta com os
cidadãos e do certo grau de autonomia e discricionariedade em suas ações, esses
burocratas não conseguem desempenhar seus trabalhos de acordo com as concepções
ideais em virtude das limitações de seus trabalhos: faltam recursos; o tempo e
as informações disponíveis são insuficientes; e há pressões ambíguas, quando
não conflitantes, exercidas pelos seus supervisores e pelos cidadãos.
Reforço como forma metodológica à
noção sobre o presente tema, invocando o ensaio de Lipsky e outros, que
demonstra o elenco dos burocratas implementadores identificados como
“burocratas de nível de rua”: agentes estatais que, diferentemente dos
burocratas de médio escalão (diretores, gerentes, coordenadores etc.), prestam
seus serviços diretamente ao usuário-cidadão ou monitoram os serviços públicos
prestados por terceiros (HAM e Hill, 1993; LIPSKY, 1980).
Segundo Lipsky, para os burocratas
que atendem diariamente os usuários, chamados na literatura também de
burocratas da linha de frente ou burocratas das esquinas (Oliveira, 2012), a
exemplo de policiais, assistentes sociais, enfermeiros, médicos, professores,
juízes etc., torna-se inevitável adotar ações discricionárias para garantir a
aplicação das políticas no plano administrativo. As organizações do serviço
público que empregam um número significativo de burocratas de nível de rua em
relação à sua força total de trabalho são chamadas burocracia de nível de rua.
Lipsky (1980) registra em nota de
rodapé, uma constatação que faz toda diferença, assim transcrita: “Por outro
lado, nem todos trabalhadores das burocracias de nível de rua, são burocratas
de nível de rua (p. ex., escriturário em um departamento de assistência social
ou de polícia com atribuições administrativas de rotina).”
Outro importante ponto a ser revisitado
é o invólucro da burocracia de linha de frente que vem a ser o “fator da
discricionariedade”, que inegavelmente permeia grande parte da estrutura, como
podemos constatar abaixo.
Mais do que inerente e inevitável, a
discricionariedade é muitas vezes desejável ao desempenho das funções da
burocracia de linha de frente, que lida continuamente com situações imprevistas
e emergentes. Nas palavras de Lipsky (2010, p. 15, tradução nossa), “até certo
ponto, a sociedade busca não apenas imparcialidade de seus órgãos públicos, mas
também compaixão para circunstâncias especiais e flexibilidade para lidar com
elas”. Assim, a burocracia de nível de rua encontra-se muitas vezes em uma
situação paradoxal: de um lado, suas funções são frequentemente “programadas”,
no sentido de serem realizadas para atingir os resultados desejados de seus
órgãos públicos ou das políticas públicas; de outro lado, seu trabalho requer
um alto grau de adaptação e responsividade a casos individuais complexos.
(Orgs. PIRES, LOTTA, OLIVEIRA, IPEA, 2018).
Como o próprio autor afirma, a
palavra burocracia implica algum conjunto de autoridades e normas a serem
seguidas, enquanto a expressão nível de rua denota algum distanciamento dessas
autoridades e aproximação a casos individuais mais Contribuições dos Estudos
Sobre Burocracia de Nível de Rua complexos (Lipsky, 2010, p. 12). É neste
sentido que os burocratas de nível de rua vivenciam a controvérsia política, na
medida em que são duplamente pressionados: pelas demandas de serviços para
cumprirem metas; e pelos cidadãos para aumentarem seu acesso. (Orgs. PIRES,
LOTTA, OLIVEIRA, IPEA, 2018).
Pela correlação que há com a
investigação aponto ao fim e ao cabo a observação dos Profs. da FGV/SP,
Bernardo Oliveira Buta e Marco Antônio Carvalho Teixeira, que afirmam: “os
atores estatais estão em um contínuo processo de negociação com a sociedade.”
(BUTA & TEIXEIRA, Revista Organizações e Sociedades, 2020).
Nota: As referências bibliográficas e
sites pesquisados estão no artigo original.