sexta-feira, 21 de outubro de 2022

BUROCRACIA DE NÍVEL DE RUA: AGENTE ESTATAL COMO IMPLEMENTADOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS.

 

Por Eduardo Fernandes da Paz




Após a Constituição Federal/88 os estudos e aprendizagens sobre burocracia de nível de rua quando se trabalha o tópico da implementação de políticas públicas tem ganhado robustez, sobretudo no campo da Ciência Política e da Administração Pública.

Consagrada e reconhecida globalmente à produção acadêmica de autoria de Michael Lipsky que foi professor de Ciência Política na University of Wisconsin e no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Em 1969 Lipsky apresenta o artigo Toward a theory of street-level bureaucracy, no encontro anual da American Association of Political Science (APSA), o qual é publicado como texto para discussão do Institute for Research on Poverty da Universidade de Wisconsin.

No ano 1980 Lipsky concebe o livro denominado Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Service, traduzido (por Arthur Eduardo Moura da Cunha) e publicado com muito zelo e competência pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), no ano de 2019, incentivado, creio eu, pela militância da Profª Gabriela Lotta, sendo a obra Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços públicos, aguardada à época com expectativa no âmbito acadêmico brasileiro e outros segmentos para ingressar na literatura nacional.

Lipsky apresenta vários debates e definições de mérito inspiradoras, mas creio que nesse momento o enunciado mais importante para introduzir o tema e atrair para argumentação de forma explícita é a elaboração da categorização de agentes públicos definidos como burocratas de nível de rua que se conectam diretamente com o mecanismo das políticas públicas processadas. Abarcando ressaltar, a existência de elementos de identidade entre todos esses agentes.

Registram os pesquisadores, que com base nos princípios gerais da Constituição de 1988, as políticas públicas, mormente, as sociais, organizam-se pelos chamados de Sistemas Nacionais de Políticas Públicas, estruturas institucionais montadas para compatibilizar a descentralização das políticas públicas com a coordenação federal, tanto em termos de articulação dos entes federativos, como também a que se refere ao apoio financeiro e técnico aos governos subnacionais (FRANZESE & ABRUCIO, 2013: BICHIR, SIMONI & PEREIRA, 2020).

Complementa Andreia Souza R. Schneider Nunes partindo do pressuposto de que política pública possui natureza coletiva enquanto categoria jurídica, pois é a partir do direito que se estrutura o quadro institucional de determinado programa de ação governamental, a fim de que esteja em conformidade a Constituição Federal no sentido da concretização dos direitos fundamentais e projeção da cidadania. (NUNES, PUC/SP, 2020).

Fábio Konder Comparato considera a política pública como atividade, outrora advinda da teoria da empresa e hoje também empregada na esfera governamental. Conceitua como “(...) um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado. (...) A política, como conjunto de normas e atos, é unificada pela sua finalidade” (COMPARATO, 1998).

Pretende o texto com brevidade, apresentar a trajetória histórica, conceitos chaves e compartilhar a missão e perfil dessas atividades de extrema importância para os cidadãos e as cidades individualmente ou municípios aglutinados (p. ex. regiões metropolitanas), somado aos estados federados e continuando nessa lógica de percurso até atingir o poder central, enfim, para todo sistema público e usuários/clientes que estão na ponta aguardando serem legitimamente atendidos.

Impõe-se para tanto, esclarecer a questão conceitual sobre burocracia, na oportunidade optando pela oferta de Max Weber sobre o assunto, que propôs:

“consiste em uma forma organizacional de um sistema sociopolítico administrada de forma hierárquica, com base na autoridade racional-legal, em que as normas prevalecem sobre os interesses individuais e a discricionariedade de seus agentes.” (PEREIRA e MOTTA, 1987; PIRES, 2009; WEBER, 1968).

Vários países do mundo moderno construíram um arquétipo de burocracia que, tal qual definida por Max Weber, seguiria os princípios de impessoalidade nas relações, hierarquia de autoridade, padronização das rotinas e procedimentos, profissionalização, meritocracia e especialização das funções. Este conjunto de características levaria a um determinado comportamento padrão dos funcionários, a partir do qual “o espaço para discernimento e julgamento pessoal seria reduzido ou inexistente” (DE BONIS e PACHECO, 2010).

Neste constructo, merece atenção visando abranger uma melhor compreensão da exposição de um marco explicativo para mais importante indagação desta composição: do que se trata burocracia e burocrata de nível de rua?

Mas antes, é necessário passar pela linha histórica, objetivando dar coesão ao texto, por ser a melhor prática em base epistemológica. Assim sendo, destaco o itinerário como abaixo estruturado mesmo que resumidamente, para no desenvolvimento e ao final atingir a pretensão do texto.

Herbert Simon (1947) chamou atenção para a necessidade de um melhor entendimento sobre a posição de poder e influência nos processos organizacionais dos trabalhadores do “chão de fábrica”. Michel Crozier (1964), por sua vez, em um estudo de caso de duas burocracias francesas, procurou entender as dinâmicas internas de poder, combinando análises sobre atores e subgrupos organizacionais com disputas em torno da rotinização de processos ou da manutenção do poder discricionário desses atores. James Q. Wilson (1967) identificou uma série de “problemas” inerentes à burocracia, tais como o problema da accountability e do controle, da equidade e do tratamento igualitário, da eficiência e da responsividade aos cidadãos. Outra referência importante, Herbert Kaufman (1967), analisando o serviço florestal estadunidense, procurou compreender como os guardas florestais apresentavam um comportamento relativamente homogêneo, ainda que atuando em um arranjo organizacional bastante descentralizado. Essas obras de referência abriram caminho para um conjunto de estudos empíricos observacionais nas décadas de 1960, 1970 e 1980 que buscaram compreender o funcionamento prático e cotidiano de organizações implementadoras, como as forças policiais e os órgãos do sistema de justiça e garantia de direitos (Bittner, 1967; van Maanen, 1973; Brown, 1981; Silbey, 1981). Estes estudos indicaram que uma descrição mais acurada do funcionamento rotineiro de uma burocracia pública deveria contemplar: i) decisões, práticas e comportamentos nem sempre prescritos ou autorizados pela lei; ii) ações baseadas em respostas a situações específicas, em vez de concepções genéricas dos objetivos e trabalhos a serem desenvolvidos; iii) interpenetração de fatores culturais, organizacionais e associados à estrutura social; e iv) variações entre diferentes organizações, assim como entre agentes de uma mesma organização. Ao se adensarem em um conjunto vasto de estudos empíricos, esses achados contribuíram para uma percepção crítica de que leis, regras e mandatos formais não se transformam, de forma automática ou simples, em ação nas linhas de frente do serviço público. Uma série de elementos intermediários se colocou no trajeto Contribuições dos Estudos Sobre Burocracia de Nível de Rua entre as regras e estruturas formais e o comportamento cotidiano dos agentes de implementação (Pires, 2017). Como consequência, uma maior atenção aos agentes de ponta, a suas condutas cotidianas e aos usos da discricionariedade se fez incontornável (CAVALCANTI, LOTTA & PIRES, 2018).

A década de 80 vai clarear com maior vigor o reconhecimento da posição estratégica dos burocratas de nível de rua consolidando sua incontestabilidade para as políticas públicas.

A forte alegação de Evelyn Brodkin (2012; 2015), Street-Level Bureaucracy teve o mérito de fazer com que duas literaturas até então isoladas – a literatura sobre discricionariedade burocrática e a sobre implementação de políticas públicas – pudessem conversar entre si.

Retornando para tarefa de desvelar o questionamento sobre o que se refere Burocracia e Burocrata de nível de rua, gostaria de abordar como primeiro dado elucidativo sua distinção do que realmente é, e como pode aparentar ser. Pode parecer um termo pejorativo e defectivo, contudo ele tem uma definição, direção e aplicabilidade inversa correndo na raia do enaltecedor, dignificante e de extrema necessidade para em seguida demonstrar seu alcance significativo.

Lipsky (2010) esclarece que a burocracia de nível de rua é caracterizada por desempenhar seu trabalho sob certas condições subótimas. Isto é, para além da interação direta com os cidadãos e do certo grau de autonomia e discricionariedade em suas ações, esses burocratas não conseguem desempenhar seus trabalhos de acordo com as concepções ideais em virtude das limitações de seus trabalhos: faltam recursos; o tempo e as informações disponíveis são insuficientes; e há pressões ambíguas, quando não conflitantes, exercidas pelos seus supervisores e pelos cidadãos.

Reforço como forma metodológica à noção sobre o presente tema, invocando o ensaio de Lipsky e outros, que demonstra o elenco dos burocratas implementadores identificados como “burocratas de nível de rua”: agentes estatais que, diferentemente dos burocratas de médio escalão (diretores, gerentes, coordenadores etc.), prestam seus serviços diretamente ao usuário-cidadão ou monitoram os serviços públicos prestados por terceiros (HAM e Hill, 1993; LIPSKY, 1980).

Segundo Lipsky, para os burocratas que atendem diariamente os usuários, chamados na literatura também de burocratas da linha de frente ou burocratas das esquinas (Oliveira, 2012), a exemplo de policiais, assistentes sociais, enfermeiros, médicos, professores, juízes etc., torna-se inevitável adotar ações discricionárias para garantir a aplicação das políticas no plano administrativo. As organizações do serviço público que empregam um número significativo de burocratas de nível de rua em relação à sua força total de trabalho são chamadas burocracia de nível de rua.

Lipsky (1980) registra em nota de rodapé, uma constatação que faz toda diferença, assim transcrita: “Por outro lado, nem todos trabalhadores das burocracias de nível de rua, são burocratas de nível de rua (p. ex., escriturário em um departamento de assistência social ou de polícia com atribuições administrativas de rotina).”

Outro importante ponto a ser revisitado é o invólucro da burocracia de linha de frente que vem a ser o “fator da discricionariedade”, que inegavelmente permeia grande parte da estrutura, como podemos constatar abaixo.

Mais do que inerente e inevitável, a discricionariedade é muitas vezes desejável ao desempenho das funções da burocracia de linha de frente, que lida continuamente com situações imprevistas e emergentes. Nas palavras de Lipsky (2010, p. 15, tradução nossa), “até certo ponto, a sociedade busca não apenas imparcialidade de seus órgãos públicos, mas também compaixão para circunstâncias especiais e flexibilidade para lidar com elas”. Assim, a burocracia de nível de rua encontra-se muitas vezes em uma situação paradoxal: de um lado, suas funções são frequentemente “programadas”, no sentido de serem realizadas para atingir os resultados desejados de seus órgãos públicos ou das políticas públicas; de outro lado, seu trabalho requer um alto grau de adaptação e responsividade a casos individuais complexos. (Orgs. PIRES, LOTTA, OLIVEIRA, IPEA, 2018).

Como o próprio autor afirma, a palavra burocracia implica algum conjunto de autoridades e normas a serem seguidas, enquanto a expressão nível de rua denota algum distanciamento dessas autoridades e aproximação a casos individuais mais Contribuições dos Estudos Sobre Burocracia de Nível de Rua complexos (Lipsky, 2010, p. 12). É neste sentido que os burocratas de nível de rua vivenciam a controvérsia política, na medida em que são duplamente pressionados: pelas demandas de serviços para cumprirem metas; e pelos cidadãos para aumentarem seu acesso. (Orgs. PIRES, LOTTA, OLIVEIRA, IPEA, 2018).

Pela correlação que há com a investigação aponto ao fim e ao cabo a observação dos Profs. da FGV/SP, Bernardo Oliveira Buta e Marco Antônio Carvalho Teixeira, que afirmam: “os atores estatais estão em um contínuo processo de negociação com a sociedade.” (BUTA & TEIXEIRA, Revista Organizações e Sociedades, 2020).

Nota: As referências bibliográficas e sites pesquisados estão no artigo original.